A gente se acostuma a acordar de manhã, sobressaltado porque está na hora.
A tomar café correndo porque está atrasado.
A tomar café correndo porque está atrasado.
A ler jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. 
A comer sanduíches porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. 
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia. 
A gente se acostuma a abrir a janela e a ler sobre a guerra. 
E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. 
E aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. 
E aceitando as negociações de paz, aceitar ler todo dia de guerra, dos números da longa duração. A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. 
A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. 
A ser ignorado quando precisava tanto ser visto. 
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o que necessita. 
E a lutar para ganhar o dinheiro com que paga. 
E a ganhar menos do que precisa. 
E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. 
E a saber que cada vez pagará mais. 
E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com o que pagar nas filas em que se cobra. 
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. 
Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. 
Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. 
Se a praia está contaminada, a gente só molha os pés e sua no resto do corpo. 
Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. 
E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda satisfeito porque tem sono atrasado. 
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida.
Que aos poucos se gasta, e que, de tanto acostumar, se perde de si mesma.
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida.
Que aos poucos se gasta, e que, de tanto acostumar, se perde de si mesma.
MARINA COLASANTI
 
 
 
 



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